Como empresas redigem cláusulas de renegociação em seus contratos? No texto anterior (leia aqui), exploramos algumas questões em torno do seguinte jogo na arquitetura contratual: o uso de linguagem precisa e de termos...
Publicado em 07 de outubro de 2025
Como empresas redigem cláusulas de renegociação em seus contratos? No texto anterior (leia aqui), exploramos algumas questões em torno do seguinte jogo na arquitetura contratual: o uso de linguagem precisa e de termos vagos para descrever os riscos que provocam a revisão do negócio. Essa leitura nos permitiu identificar dois estilos, ou arquétipos, dessas cláusulas: algumas têm lacunas ou palavras propositalmente abertas (“situações econômicas graves”, “eventos imprevisíveis”); outras descrevem riscos de maneira bastante específica (lembre-se do exemplo da revisão contratual “se a produção de aço proveniente de fontes de hematita atingir 20% da produção total da siderúrgica”).
Agora, o objetivo é este: mostrar que esses estilos podem ser combinados estrategicamente numa cláusula de renegociação mais sofisticada para contratos complexos. Vamos analisar duas cláusulas-modelo da Câmara de Comércio Internacional (CCI) como ponto de partida.
Cláusulas-modelo de força maior e de hardship da CCI na versão de 2020
Em 2020, a CCI divulgou suas novas cláusulas-modelo de força maior e de hardship, cujo texto em português está disponível aqui. Essas versões revisam o texto-padrão anterior, de 2003. O propósito da CCI com essa iniciativa é fornecer ao mercado cláusulas flexíveis que as empresas possam incorporar aos seus contratos por remissão ou com adaptações simples.
Curiosamente, o modelo de cláusula de hardship — que serviria para inspirar cláusulas de renegociação em sentido amplo — deixa de inovar ao descrever os riscos. Como ele foi pensado para servir a inúmeros contratos de setores distintos, sua base de incidência é bem simples. As partes se obrigam a renegociar em duas situações: (a) se o cumprimento das obrigações “se tornou mais oneroso devido a um evento que não poderia ter sido razoavelmente levado em consideração ao tempo da conclusão do contrato”; ou (b) “o evento ou suas consequências não poderiam ter sido razoavelmente evitados ou superados”. Esse texto repete a lógica das leis domésticas e de instrumentos de soft law, como os princípios Unidroit, que regulam situações de excessiva onerosidade — ainda que com bases teóricas distintas — a partir de conceitos jurídicos indeterminados, ou seja, com termos vagos [1].
Por outro lado, o modelo de força maior usa uma abordagem mais elaborada — como veremos logo adiante. Mas faz sentido se espelhar nele para estruturar cláusulas de renegociação? Sim: força maior e hardship, distintos na teoria, costumam ser muito próximos na prática. No fundo, ambos lidam com riscos que impedem as partes de cumprir suas obrigações dentro do equilíbrio projetado inicialmente. Tomados como conceitos abstratos, a força maior lida com casos de impossibilidade superveniente da prestação, que pode ser temporária ou permanente. Já a noção de hardship, tal como lapidada no comércio internacional, remete a obrigações muito mais custosas de adimplir — ainda que elas continuem sendo possíveis do ponto de vista físico e jurídico. O fato é que não existe uma linha fixa entre a “impossibilidade” e a “simples dificuldade” de prestar. Tanto é assim que, na prática mercantil, muitas cláusulas misturam as duas categorias.
A única diferença juridicamente relevante entre as cláusulas é funcional. A cláusula típica de força maior costuma prever a suspensão das obrigações (se a impossibilidade é temporária) ou a resolução do contrato (se permanente), afastando em qualquer caso o inadimplemento do prejudicado. Já uma cláusula de hardship — de novo, em seu formato mais tradicional — enfatiza o dever de renegociação do contrato para adaptá-lo às novas circunstâncias, deixando a ruptura como último recurso. Vale dizer: se ao invés de pactuar a suspensão ou a resolução do contrato (força maior) as partes se obrigam a revisá-lo, com ou sem a ajuda a terceiros, tem-se uma cláusula de renegociação — pouco importa a natureza dos fatos empíricos que ela regula. O domínio aqui é da atipicidade: basta que o contrato enquadre o risco na esfera de um ou de outro instituto.
Adaptando o modelo de força maior para as cláusulas de renegociação
Analisemos então a cláusula de força maior da CCI — mas pensando em como adaptar sua estrutura básica para uma cláusula de renegociação.
De saída, o modelo enuncia um conceito aberto de força maior: qualquer fato que impeça a parte de cumprir sua obrigação, desde que atendidos três requisitos. Primeiro, que o impedimento esteja “fora do controle razoável” do prejudicado. Segundo, que o evento não poderia ter sido “razoavelmente previsto” ao celebrar o contrato. E terceiro, que o prejudicado não pudesse “razoavelmente” evitar ou superar os efeitos do impedimento. Para amoldá-lo às situações típicas de renegociação, as partes podem substituir o critério do “impedimento” — que remete a obrigações impossíveis — para “maior dificuldade” ou outras expressões comuns na prática, como “excessiva onerosidade” e similares.
Veja-se que o conceito geral é pródigo em usar um termo vago no suporte fático: a “razoabilidade”. Essa linguagem economiza em custos de transação — e se aplica teoricamente em qualquer negócio —, mas delega a tarefa de qualificar um evento ao intérprete do caso concreto. Isso também ocorre nas cláusulas de renegociação, sobretudo nos exemplos de cláusulas de hardship mais concisas. Vimos no texto anterior que expressões deixam o contrato flexível. Por definição, tanto a força maior quanto o hardship tratam de impactos severos na economia contratual. Um conceito vago captura diversos fatos imprevisíveis sem que as partes tenham que antecipar e negociar sobre cada um deles – o que é necessário numa economia repleta de incertezas. O contraponto é que a cláusula tende a gerar dúvidas interpretativas, além de serem pouco clara para orientar condutas ex ante – ou seja, antes de os litígios ocorrerem.
Como conter essa abertura semântica excessiva? Em tese, um caminho seria adotar a estratégia oposta ao do conceito geral: escrever listas de eventos. Nesse estilo redacional, comum na prática, os contratantes qualificam vários fatos de antemão como relevantes — incorrendo em custos para antecipar e descrever cada um deles. Por exemplo: o Código Civil define a força maior como “o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir” (artigo 393, parágrafo único). Uma cláusula com lista taxativa ou exemplificativa traz mais certeza ao estabelecer concretamente o que é “fato necessário”: uma restrição a importações, uma nova regulação ambiental, um acidente geológico e por aí vai. O problema nasce se essa lista deixa o negócio rígido demais: as partes assumem o risco de prender a revisão contratual só aos eventos indicados ou, quando muito, a eventos parecidos com os da lista (valendo-se de expressões como “e similares”). Para qualquer outro, presume-se que vale a intangibilidade do vínculo. É o dilema da sub e superinclusão da linguagem que vimos no texto anterior.
Para equilibrar certeza e flexibilidade, o item 2 da cláusula-modelo elenca os chamados “eventos de força maior presumidos”. Por meio dela, o contrato cria presunção relativa de que certos fatos atendem aos dois primeiros requisitos do conceito geral descrito no item anterior. São eles: guerras, atos de terrorismo; restrições monetárias ou comerciais; atos governamentais; epidemias; eventos naturais extremos, greves, dentre outros.
Naturalmente, é lícito às partes ampliar ou restringir essa lista. Inclusive, um dos contratantes pode se responsabilizar até nos casos de força maior, como autoriza o artigo 393, parte final, do Código Civil (“O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”). Esses mesmos fatos tendem a justificar renegociações de contratos duradouros: isso fará sentido se o reflexo deles no equilíbrio justificar a adaptação das obrigações em vez de suspender ou resolver o contrato como um todo.
Eis o detalhe interessante: os “eventos presumidos” redistribuem o ônus probatório entre os contratantes, alterando a força relativa de suas posições — mas sem prender o contrato a enunciações taxativas. No Brasil, trata-se de negócio jurídico-processual típico (artigo 373, § 3º, CPC). Basta ao contratante prejudicado provar que um desses eventos ocorreu e que era impossível evitar ou mitigar o impacto dele sobre a obrigação. Dito de outra forma: o contratante fica dispensado de mostrar que o fato era imprevisível (primeiro requisito) ou que estava fora de seu controle (segundo requisito). Em qualquer caso, a parte que invoca a força maior deve provar terceiro requisito, ou seja, que ela não poderia “razoavelmente” evitar ou superar o impedimento.
Isso faz sentido porque, se não fosse assim, a obrigação ainda seria possível e, logo, não seria o caso de aplicar a força maior. Cabe ao contratante beneficiado — e, portanto, que nega fato ou a sua qualidade de força maior — provar que naquele caso concreto certa ocorrência não preenche os pressupostos do conceito geral. Numa disputa, é ele quem deve mostrar que certo acontecimento, presumindo como força maior na lista, era na verdade “razoavelmente previsto” ou estava “no controle da parte”.
A diferença do modelo CCI está no seu caráter híbrido. O conceito geral flexibiliza a lista de eventos – ao passo que a lista contém o viés expansivo e vago do conceito geral. As partes aproveitam a maior certeza da linguagem precisa ao exemplificarem textualmente os fatos causadores do desequilíbrio, ao tempo em que se protegem contra imprecisões eventuais dessa lista pela flexibilidade dos “eventos presumidos”. Se esse contrato fosse levado a disputa, o conceito geral e aberto comunica ao julgador a vontade das partes para que ele ajuste o desalinho de sua cláusula ex post, ou seja, usando visão retrospectiva. Essa lógica é compatível com a renegociação: ao fim e ao cabo, o modelo é útil para cláusulas que lidam com riscos e incertezas, seja qual for a sua qualificação jurídica.
Conclusão
Para concluir, voltemos à pergunta que dá título a este texto: o que faz uma boa cláusula de renegociação? Não existe uma cláusula “ideal”. Se arriscarmos uma resposta, ela seria esta: mais importante do que buscar uma estrutura ótima, redatores e intérpretes devem atentar para os critérios que norteiam as abordagens práticas para lidar com renegociações.
É útil imaginar uma linha gradativa de arquétipos segundo a precisão linguística: desde cláusulas lacunosas, passando por expressões vagas até as cláusulas mais detalhadas sobre riscos bem específicos. As cláusulas-modelo da CCI são só um primeiro exemplo para mostrar como, em contratos mercantis, combinar estrategicamente esses estilos assume formas variadas dependendo do objetivo das partes.
Fonte: Conjur
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